FOTOAFORISMOS

jueves, 3 de marzo de 2016

Celebração egoísta

Em alguma nota pude ler que Chopin jamais se propôs a lecionar música. Jamais verifiquei a veracidade desta informação. Não me interesso pela veracidade dos fatos. Preocupo-me com a veracidade dos atos. Para dar veracidade a sua atitude Chopin justificava dizendo algo  assim: "jamais deixaria repousar minha mão tirana sobre a cabeça de alguém".

Dito ou não por Chopin, se lecionou ou deixou de fazê-lo, importa muito pouco. A verdade está no que sentencia o ato anunciado. Que cuidado! Evitar expor alguém ao domínio de outrem. Tirania ou amor? Preciosismo ou egoísmo? Zelo ou soberba?

Infelizmente, todo ato nasce com alguma destas binômias. Uma coisa ou outra... Se o fato nãé definitivo, que seja convicto o ato. Sofrer ou gozar... Se tem aprendido que: quem deixa para outros a conotação de seus atos, será mero coadjuvante dos fatos - a mercê dos conteúdos, das informações, do dito, do falado, do relevante, do comum. Ou sob júdice das identificações alheias. Eu me inclino com Dae Son, diante do que exige seu personagem do "Caderno de obviedades":

"... prefiro uma vida dolorida para mim, à outra já vivida por alguém. Equivocar-me pretendendo acertar, que consegui-lo enganado por outros."

É extemporâneo propor a si mesmo, uma vida tão singular? É pecado então? Não. É egoísmo. Pena que este traço de caráter - este rango de personalidade - esteja mal frequentado entre nós. Foi comum entre diversos nomes da cultura em outro tempo. Hoje nãé mais que uma caricatura entre pessoas públicas. Nem pecado, nem virtude.

Vive-se o egoísmo publicamente em dias de hoje, além de celebrar-lhe por estereótipos: o conservadorismo, a estupidez, a teimosia, a ganância e sua mesquinhez. Mas a psique do egoísmo é outra. É a radicalidade absoluta do instinto de sobrevivência. Traço incompatível com a vida em sociedade. Desnecessário, prescindível, deslocado. Traço imprescindível para uma vida de exilado, retirado ou para uma vida de absoluta auto-suficiência.

Cioran... Ele sim, solitário, egoísta... Ou por ele mesmo: um enfermo de solidão cósmica. Graças... A humanidade cuida destas pessoas... E assim, ele e outros - e talvez eu mesmo -podem gozar de uma vida longa. Cinismo, ironia, crítica ácida, morbidez e hedonismo são as ferramentas pessoais, usadas pelos insatisfeitos da vida-em-comum, para alcançar longevidade. Não há como ser saudável - que me perdoem os estóicos - vivendo em bando, em sociedade. Nossos estóicos urbanizados - serei intolerante e generalista, permitam-me - são higienistas, são eugenistas com camuflagem de homens de sabedoria.

Solidão será sempre um desfrute, não um sofrimento. Nem toda doença nos faz sofrer. O vício é bom, pena que nos destrói. A cobiça quase sempre é empreendedora, lastima que seja perversa. A preguiçé meditativa, contudo nos faz padecer do coração, pois o vago nunca vai amar nada, nem a ninguém. A teimosia vista ao contrário, pode ser esperança e perseverança. O sofrimento seria coragem, senão lhe tivéssemos medo e pudéssemos aquietar-se diante de sua inevitabilidade. Minimizar-lhe os danos, diria Schopenhauer, será  nossa mais nobre tarefa e pedagogia diante dele.

foto  Lori de Almeida - Montevideo
Mas a solidão cósmica não tem nenhuma destas máculas. Nela, o mundo está abandonado no universo, como o solitário está abandonado num mundo de pessoas. Compartem este sentimento mundo e indivíduo. Para ele, depender dos outros, da coletividade, da sociedade, do pai e da mãe, será sempre uma fraqueza. Entre estes, sobretudo os mais trágicos e mártires, viver irredutível é um destino. Viver toda uma vida tentando evitar que a coletividade lhe impeça de cumpri-lo, exige força, determinação, egoísmo, individualidade, irritabilidade e sensibilidade diuturna. Muitos se tornam homens de gênio, mas a maioria sucumbe. De diversas formas. Dostóievski descreve muito bem os últimos. Exemplaridade, castidade e escatologia para os santos. Arte e voz para os convictos. Ou servir-se da resignação, da amargura e do silêncio para aqueles de pouca saúde.

O solitário cósmico, não quer comiseração nem quer auxílio. Seu sofrimento diminui à medida que pode desafogar-se do eu absoluto que lhe habita. E não existe outra forma que descobrir sua própria maneira de fazê-lo. Isto é o abandono. Isto é destino.

Não faz sentido celebrá-lo em público, não há mérito a ser concedido, nem em anunciá-lo aos quatro ventos. Serve apenas para que ele possa ter algo de paz em seus dias. Luxo fugaz e egoísta, pois não se pode compartir ou repartir. Celebraçãíntima, egoísta e efêmera. No entanto, quanta beleza emana de uma criatura em paz... Quanto nos prende a atenção. Quanto nos pede atençãàs armadilhas da vida em bando... Um solitário jamais pronunciará "Salve-me". Pendurado num precipício, vendo o mundo e alma lhe escaparem no próximo instante, alertará "Salve-se". Num grito, numa obra, numa poesia... Assim celebrará.

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