Contou-me Heinrisk que após ler "O amante de mulheres tristes" decidiu autobiografar-se, porém foi incapaz de encontrar a disciplina e a dedicação (mãe da maioria das inspirações) necessárias para levar a cabo o que era seu projeto. Ainda assim concluiu que isto não seria justificativa suficiente para impedir a realização deste desejo pessoal. Veio a mim um dia atrás, e sem rodeios iniciou a conversa tentando me convencer que eu devería fazer-lhe este favor: escrever-lhe uma autobiografia. Já antecipando argumentos dizia que não seria difícil para mim que já tenho os elementos que lhe revelaram sua identificação com meus escritos. E sem dar a tempo a manifestar-me acrescentou a natural responsabilidade de minha parte, uma vez que foi meu fotoaforisma que motivou-o ao desejo.
foto (ar) Lori de Almeida
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Sim...estas primeiras palavras parecem ter algo de ilógico num tom imperativo... Contra elas, de imediato meu gênio manifestou suas reservas...as reconheci nas pontas dos dedos de minhas mãos agitando-se, aquecendo-se... ao respirar ruidosamente...através de golpes de diafragma...
Minha carta de nascimento serviu-me para esclarecer muitas coisas, entre elas estas manifestações de gênio e a maneira de domá-lo. Todo gênio recusa ordens, sem embargo, está inclinado a realizar desejos. O gênio solitário, presa da individualidade, realiza sonhos íntimos e particulares; já o gênio universal deve realizar o sonho da humanidade fazendo de alguma individualidade sua presa.
Calei meu gênio íntimo...esperei que meus dedos se tranquilizassem... mentalizei o gênio universal... e quando a individualidade de Heinrisk estava baixo o domínio de minha atenção, no silencio do meu pensamento, pude identificar o apelo de suas palavras:
- "Quero poder lembrar das coisas recordando nelas o que não senti... Assim, de uma vez por todas o destino poderá aceitar-me."
O que podería eu dizer a um homem convencido em sua procura? Titubear-lhe? Oferecer-lhe as minhas justicativas para não fazê-lo?...Poucos são hoje em dia, os homens convictos como este senhor: disse-lhe sim, me fiz e me senti responsável por organizar sua memória. São tão belos os homens convictos.
... estive a ponto de prometer-lhe um sentido inédito para seus dias anteriores...Calei meu gênio íntimo...mentalizei o gênio universal...e quando a individualidade de Heinrisk estava baixo o domínio de minha atenção, no silencio do meu pensamento...quis ver-lhe em paz com seus dias posteriores protegido da contaminação de minha vaidade pessoal.
Minha carta de nascimento serviu-me para esclarecer muitas coisas, entre elas estas manifestações de gênio e a maneira de domá-lo. Todo gênio recusa ordens, sem embargo, está inclinado a realizar desejos. O gênio solitário, presa da individualidade, realiza sonhos íntimos e particulares; já o gênio universal deve realizar o sonho da humanidade fazendo de alguma individualidade sua presa.
Calei meu gênio íntimo...esperei que meus dedos se tranquilizassem... mentalizei o gênio universal... e quando a individualidade de Heinrisk estava baixo o domínio de minha atenção, no silencio do meu pensamento, pude identificar o apelo de suas palavras:
- "Quero poder lembrar das coisas recordando nelas o que não senti... Assim, de uma vez por todas o destino poderá aceitar-me."
O que podería eu dizer a um homem convencido em sua procura? Titubear-lhe? Oferecer-lhe as minhas justicativas para não fazê-lo?...Poucos são hoje em dia, os homens convictos como este senhor: disse-lhe sim, me fiz e me senti responsável por organizar sua memória. São tão belos os homens convictos.
... estive a ponto de prometer-lhe um sentido inédito para seus dias anteriores...Calei meu gênio íntimo...mentalizei o gênio universal...e quando a individualidade de Heinrisk estava baixo o domínio de minha atenção, no silencio do meu pensamento...quis ver-lhe em paz com seus dias posteriores protegido da contaminação de minha vaidade pessoal.
Por honestidade lhe confessei não ser escritor e tampouco biógrafo. Deixei-lhe claro que trabalho continuamente, porém sem disciplina e sem consequência. Podería, lhe frisei em tom de gravidade, fragmentar-lhe a vida em mil pedaços, em mil aforismos. De uma ou de outra maneira transformaría os fatos, que ele me dispusesse, em ficções de uma realidade qualquer. Revelei-lhe um escuro aspecto que costuma manifestar-se, quando nos aproximamos do esgotamento de uma narrativa: o autobiografado tem a ilusão de ter podido escolher outro caminho para encontrar-se ao destino.
Nada disso livrou-me da sorte de encontrar neste homem - tão convencido de minha responsabilidade - a resposta seguinte:
"Faça o que quiseres com esta vida que já não tenho em minhas mãos...Quero vê-la por outros olhos...quero lê-la em outras palavras. Quero que vc me diga o que eu não pude dizer-me...e encontre nela as novidades que não consegui enxergar."
Hoje esteve por aqui deixando-me um punhado de cartas e logo saiu...sem mesmo aceitar o copo de água que lhe ofereci...Baixo um sol escaldante lhe vi - desde uma das pequenas janelas, de onde contemplo um mundo que não me pertence - afastando-se pelo caminho varrido de calor, vento e passos que costuma nascer nestes dias de pleno verão. diante de minha casa.