FOTOAFORISMOS

martes, 2 de febrero de 2016

CELEBRAÇÃO ÍNTIMA

A vida nos dá poucos deleites. Para fazê-los revela certos caprichos.

O primeiro deles: as porções são distribuídas individualmente.

A vida coletiva não pode chamar de prazer aquilo que oferece como "opção para todos". De onde ela elenca - e põe à demanda - desejos e anseios comuns? Não quero decepcionar à ninguém, mas todo desfrute coletivo é infinitamente menor à qualquer sensação de "corpo-próprio".

Se falamos de hedonismo, devemos considerar esta decepção. Apenas em mim posso celebrar um prazer... Só assim posso tê-lo sempre. De outra forma ele é efêmero e fugaz. Em cada um de nós - qualquer prazer - se preserva através de nossas memórias: tátil, visual, olfativa, palatal e auditiva. Na memória oral - que através da linguagem recreia-se com estas recordações, descrições de sucedâneos, instantes e momentos de exitosas sensações de vida em corpo-próprio; em primeira pessoa. Desta maneira ela também participa neste ciclo de preservação e celebração dos prazeres. Qual escritor poderá negar os prazeres e anacronismos que lhe oferece a escritura? Nenhum orador poderá negar o deleite em desfrutar de uma plateia absorvida pelo seu falar. Nenhuma alma se privará dos encantos dos cantos em voz ou instrumentos. São formas solitárias de estar: o ouvir e escutar, o provar e apreciar, o tocar e perceber, o ver e contemplar, o cheirar e distinguir. 

Em todos estes sentidos subsume algo essencial: o receber sem precisar trocar. Se falamos de egoísmo devemos reconsiderar a obrigação do oferecer. A primeira atitude do autoconhecimento deve ser o afastamento de tudo e todos. Inevitavelmente, todo o início de autocura e autoconhecimento prescinde  das trocas. É egoísta invariavelmente.

Uma celebração pública e coletiva não poderá ser a manifestação de nenhuma individualidade, ou seja, a afirmação da consciência de si próprio. Não, nenhuma alma nesta euforia carismática, busca a si própria. Não encontrará ali prazer. Apenas outro êxtase do inconsciente coletivo. Uma porção de nós mesmos na qual alguns, forçosamente, não se reconhecem resistindo-se à ela - atores, artistas, escritores, pensadores, poetas e gente de outra etiqueta.
foto e arte Lori de Almeida.

"...da pele pra dentro, mando eu", gritou-lhe o poeta.

Lá dentro está desenhada sua geografia particular. São interiores o seu vazio no estômago quanto é seu vazio de alma. São canais suas artérias quanto são canais seus pensamentos expressos. Doerá seu coração, tanto quanto lhe doerá a 
consciência. São circunvoluções que desenham a massa cinzenta de seu crânio e seu tubo intestinal. Nele se acumulam, nas  curvas que desenha, os resquícios de mundo que traga cada poeta. Em sua massa  cinza, a razão dá voltas e revoltas aos conceitos e preconceitos que todo poeta devolve ao mundo. Diverticulite. Tergiversação. Diversão. Tergiverculite. Traumas psíquicos são acidentes de relevo, fendas na crosta da pele; tragédias são eventos sísmicos e climáticos do seu temperamento; suas patologias expressam a ingerência dos próprios recursos vitais.

Somos falsos solitários é verdade. Falsos solitários como os misóginos, os individualistas, os sovinas, os assépticos, maníacos, déspotas e os arrogantes. Talvez o sejamos ainda com menos força e qualidade que estes velhos tipos. Não são sensações absolutas de solidão o que eles nos demonstram. São constructos apenas, pequenas subversões da vida coletiva.
foto  Lori de Almeida - Estación Gal. Artigas - Montevideo


A solidão mesma é sensacional e severa, não é progressiva, tampouco edificante. É assustadora e radical: um infarto, um afogamento, uma dor; um sonho, uma recordação, uma saudade; um gozo, um anseio e um não correspondido amor. São momentos do corpo-próprio em que mesmo o tempo nos abandona. Parecem arrancados de dentro de nós todos os signos da vida em comum: a esperança, a perseverança, o altruísmo e os desejos. Depois da calamidade em que nos deixam tais percalços, queremos simplesmente nosso corpo e nossa vitalidade outra vez. Solitariamente somos obrigados a reaprender o mundo, e pedaço a pedaço refazer nossa identidade. Resignação e melancolia, para alguns, quietude e meditação para outros.

Independente da forma a seguir, é " da pele para dentro" que se celebrará a vida que se deve viver. Não é sua a flor cultivada em outra alma. São de plástico e cera todas as flores que nascem fora do próprio jardim.

O egoísmo deveria ser algo assim. Cultivar para si, como intenção primeira. Se temos que dar ou oferecer, também teríamos que assumir e reconhecer as vaidades, excessos e manias costumeiras nestes gestos para logo em seguida depurá-los. Oferecer e ofertar são  atitudes distintas. Oferecer não é apenas dar. É dar-se. Este sim, é o lado sombrio de muitos egoístas: não conseguirem dar-se. Ofertar é dar algo que serve para qualquer um. Naqueles que são incapazes de depurar-se, não são egoístas que figuram: estão ali os estereótipos, os falsos solitários, os bufões esclarecidos.