Uma fábula, que me perdoem os críticos, não é uma
ficção. E muito menos com Bukowski. Depois de havermos tragado à
Kant e todos os seus subsequentes é difícil imaginar uma moralidade
inventada, “ficcionada” ou fabulada, se tudo é reflexo da
realidade consciente ou inconsciente. São poucos e raros os autores
que não buscam localizar a realidade em suas fábulas, ficções ou
delírios; enfim uma realidade para sua imaginação. Talvez Kafka,
Rilke e os que desta realidade buscaram isolar-se (Hölderlin,
Schopenhauer, Nietzsche, Pessoa, Imre Kertész e poucos mais).
A Los Angeles de Charles Bukowski muitos de nós ja a
encontramos, talvez com outro nome. As situações que nela descreve
são bastante típicas; e comuns enttre aqueles que oferecem,
prontamente e sem hesitar, a existência à risco, por um momento
fugaz de êxtase ou delírio criativo e estético. Situações mais
bizarras e degradantes seguramente poderíam ser descritas, com um
pouco de talento literário, por qualquer indivíduo que viva à
margem da arte institucionalizada. Assim pois, nem linguagem, nem
fundo descritivo fazem a originalidade de Bukowski, ele é filho de
sua geração e do seu entorno literário.
Equivocam-se muitos os críticos que reconhecem talento e qualidades literárias num escritor apenas por suas aportações intelectuais, morais ou técnicas. Se assim o fosse...pobre Bukowski. Teria morrido sem publicar, sem dar entrevistas e sem sua Mercedez usada, conseguida já nos anos finais de sua vida. E não foram poucas as pessoas que com Bukowski se animaram a escrever, ainda que na forma de diário e sonharam publicar também, reconhecendo neste estilo seu e de alguns de seus contemporâneos uma forma de expressão pessoal e literária. Talvez poucos escritores nos transmitam tão imediatamente sensação de “vontade de escritura”. Nisso ele é reconhecidamente genial e deve ter seu nome e obra guardados e lembrados.
O fabulário de Bukowski não moraliza, ao contrário, desmoraliza a todos, ou melhor, “imoraliza” a todos. Seus delírios não são produzidos pelo seu consumo de álcool e sim produzidos pela sua ressaca. Talvez menos pelo efeito do álcool sua ressaca era outra: ressaca da vida urbana, vida mundana, vida noturna e sobretudo de toda esta gente que dela participa. Qualquer pessoa sabe que em estado de embriaguez os acontecimentos, os fatos e as pessoas podem nos parecer algo estranhos e bizarros, mas não nos ocorre naquele momento encontrar-lhes um sentido ou significado; e é verdade que na maioria dos casos, participa-se com integridade e cúmplice interesse de sua presentidade. Inventamos todas estas sensações (estranhamento, bizarrice, absurdidade, etc.) críticas tardiamente, e nos falta sobriedade, porque a ressaca ainda é um estado distinto de consciencia. Além da ressaca toda a análise, crítica ou descrição é um estado extemporâneo da consciência, onde podemos depositar deliberadamente qualquer recurso de ficção ou interpretação (razão, emoção, justificação, moralização, etc.), basta para isto uma boa dose de culpabilidade e conivência.
Aí reside nossa imoralidade e é ela que nos é jogada na cara por Bukowski. Por isso as criaturas inocentes não se identificam com a leitura deste escritor: aquelas que nunca beberam desmesuradamente; que nunca se entregaram a sensação de um ato violento, ao êxtase do delírio espontâneo ou não, ao preconceito imanente das intuições que os anos em solidão originam e acumulam; aquelas que nunca perscrutaram as debilidades e fortalezas dos viciados, dependentes, marginalizados, doentes, solitários e maníacos em geral; e sobrevivem a necessidade de descrevê-los e pôr em exercício recursos de análise e de moralização. "A inocência nada mais é que a ausência de hipocresia".
Ele, em vida e em literatura, de forma covarde e
valorosa (pois afinal de contas fez literatura) e diferente de nós,
assumiu honestamente seus vícios, debilidades, preconceitos se seu
rechaço à uma imoralidade da qual ele tampouco pode escapar. Apenas
teve a decência de não nos pedir desculpas. Evitou a irrealidade e
descreveu tudo sem encenações psicológicas: duro e triste.
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