FOTOAFORISMOS

jueves, 23 de agosto de 2012

O Astigmata.

Disse-me um doutor, certa vez, que meu astigmatismo se devia à uma deformidade presente em minhas córneas. Mais ainda acrescentou a possível causa desta deformidade:  ela surgiu a raíz de algum mau hábito.

Sou intempestivo quando o assunto envolve moral e hábitos, e por ser assim, ponho-me imediatamente em posição de defesa se tenho que ouvir qualquer espécie de crítica a meus cultivados hábitos. Meu estômago parece-me esvaziar nestes momentos, se mete debaixo do diafragma arrancando-me uma inspiração profunda e sonora. Nada me molesta mais do que expôr velhos vícios a apreciação médica ou estatística. Qualquer análise, seja ela sofisticada de recursos lógicos ou não, é alheia a maneira como vivo e me enfrento a meus hábitos. Alheia! Ponto em boca!

foto  Lori de Almeida
Felizmente ainda existem médicos que, de imediato, reconhecem o paciente que cultiva a discreção de sua vida privada, a consciencia e o reconhecimento de todos e cada um dos seus defeitos. Ele era um destes e me perguntou se pilotava motos regularmente. Respondi que em toda a minha juventude desfrutei da condução de motocicletas, já relaxado ao saber que não teria que expor as cirscunstâncias de meus hábitos atuais. Antes que eu lhe perguntasse onde cabía a relação entre a moto e o astigmatismo explicou, com tom de quem já havia intuido minha pergunta e por isso se antecipava à ela:

- "Sei que pode não lhe parecer argumento científico, mas foi o que pude concluir ao prescrever lentes de correção de astigmatismo a vários pilotos de diferentes equipes de motociclismo. Utilizam a proteção dos capacetes em treinos e testes, mas prescindem dela nos contínuos deslocamentos que fazem nas motos de circulação de um circuito de provas". Dirigiu-me o olhar e percebi que me exigia uma confissão:

- Sim, eu também conduzi motos sem a proteção do capacete. E o confesso sem recriminar-me em absoluto. Um sem-fim de vezes, entre a madrugada e o amanhecer de passados veraneios, encontrei reunidos a quietude, o vazio e as cores peculiares das cidades dormidas. Mas neste época eu não encontrava nada de nocivo neste hábito. Encontrava era paz de espírito: isto sempre me pareceu saudável. Um equívoco talvez?

- Não... não lhe reprovo e nao lhe corrigiria, tampouco. Nao se trata de equívocos e de correções no seu caso. É apenas uma constatação que relaciona este seu prazer particular com a deformação de sua córnea. Sabemos que a córnea sofre uma pequena deformidade quando tem que resistir ao vento produzido pela velocidade; e sabendo também que as deformidades de córnea provocam a visão astigmata... Mas não será isto que irá amargar suas boas lembranças de juventude. Apenas quero me certificar que seu caso não sería de tratamento clínico diferenciado. Eu de minha parte lhe precreverei lentes de correção igualmente, como nos caso dos pilotos, sem mais.

- "Sinto-me envaidecido". Respondi brincando.

Puxa vida! Que edificante pode chegar a ser uma consulta médica. Sou astigmata. As coisas que antes via, desde então as aceito de outra maneira. Tudo me parece agora, uma tela de pintura impressionista. Olho para o mundo mundo sem sofrer necessidade de formas definidas e vou às coisas sem precisão de enfoque para me orientar. Aceitei de bom grado a prescriçao deste senhor de boa medicina, mas preferí assumir outro defeito e seus consequentes hábitos. Dispensei as lentes de correção, vou sem capacete, sem viseira e... sem moto. Mas não pretendo corrigir minha mirada.

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